José Carlos Da Silva Neto e Arthur Melo Florêncio


NARRATIVAS FÍLMICAS NO ENSINO DE HISTÓRIA: O MALOGRO DE MÃE! (2017)



Esse artigo inicialmente é divido em três segmentos que vão ser destrinchados ao longo do texto, primeiramente será abordado uma construção do porque é importante falar sobre essas narrativas fílmicas no ensino de história. No segundo segmento demonstramos o porquê de o filme analisado não ser uma maneira alternativa de se pensar no ensino de história (pelo menos no ensino básico) e no terceiro segmento será feito uma breve comparação com outro filme Viagem no Tempo (2016) que de fato, poderia ser uma alternativa ao ensino básico.

Quando nos voltamos para o ensino de história no Brasil e sua extensa construção histórica, nos deparamos com diversos percalços que limitaram por várias décadas a inserção do meio midiático em sala de aula, ou seja, as aulas (de história) se limitavam ao livro didático e ao discurso do professor, certamente esses elementos sobreviveram na educação brasileira contemporânea e isso se dá pela maneira como a nossa base de ensino foi construída. Um bom exemplo é olhar para os anos da ditadura militar, o contexto não permitiria novas maneiras de se dar aula e principalmente as aulas de história, visto que, para alguns historiadores como a Fonseca (2006) que trabalha com a perspectiva da ditadura militar no Brasil,  a história teria  poderes ideológicos importantes e definidores dos rumos políticos em território nacional. Desta maneira, os líderes ativos daquela época queriam o controle da história. Entretanto, mesmo passando essa década e com o processo de modificação dos currículos escolares que iria ocorrer no processo de redemocratização, ainda havia muito poucas modificações na maneira de se dar aula, mas nem tudo era um processo estagnado, havia gradativamente algumas modificações que é explanado pelo Karnal: “Por anos, o projetor de slides marcou sua presença e, a partir dos anos 1980, cresceu a utilização de filmes em videocassete com fins didáticos, quase ao mesmo tempo em que o xérox substituía o mimeógrafo.” (2012, p. 80)

Portanto, esse ponto é fundamental, pois, marca uma nova concepção de se dar aula, uma alternativa, que frequentemente é menos utilizada, visto que ainda sofre de alguns preconceitos, por exemplo, alguns professores julgam essa perspectiva cinematográfica em sala de aula como “vagabundagem” ou melhor “passatempo” e também existe essa “ele não quis dar aula, passou um filme”, então é muito compreensível que essa prática educacional seja tão ausente em muitos âmbitos escolares. Outros pontos ajudam a compreender como essas práticas fílmicas em sala de aula cresceram gradativamente, mesmo com toda essa estigmatização por parte de um corpo docente que não vê essa prática como algo funcional, esse outro ponto se volta para uma perspectiva apontada por Serge Noiret em que ele demonstra que através da virada digital, o acesso à internet modificou como as pessoas interagem com os diversos tipos de artes, a sétima arte que são os filmes, que a partir dessa virada digital e com as diversas proliferações de plataformas de streamings, essa cultura fílmica ficou muito mais acessível e com ela o passado estava disponível para ‘todos’.

Filmes sobre grandes heróis do passado, sobre a Segunda Guerra Mundial e também sobre as grandes narrativas históricas bíblicas. Ou seja, todos esses filmes abordando passados distantes através de sua própria estética e que, com essa grande árvore do conhecimento que é a web, ficaram muito fácil de se obterem e dessa forma, acabam em muitos casos sendo levados como “o real.” As pessoas podem (se não tiverem uma imagem pré-definida) levar as concepções que aparecem, por exemplo, em Êxodo: Deuses e Reis (2014) como retrato fidedigno do que aconteceu naquele contexto. É a partir dessa visão, que é construída a importância de pensar em modalidades alternativas de ensino, de pensar na prática a utilização de filmes para se estudar o passado, pois, com toda essa nova perspectiva de acesso a esse tipo de projeto cultural ideológico que são os filmes, que surge a ideia de um mediador, de um profissional que possa guiar os alunos nessa estética fílmica tão intrigante e cheia de elementos que podem ser abordados numa sala de aula e também para revigorar o ensino de história, que decerto está no momento passando por um processo de didáticas monótonas que acabam desestimulando os alunos (continuamente e progressivamente).

Dessa forma, após abordar o “porque dos filmes?” é necessário também pensar que nem todos os filmes devem (podem) ser abordados num contexto de educação básica, o professor nesse aspecto tem que saber selecionar os filmes que ele consegue melhor trabalhar e não apenas isso, é necessário olhar como o filme seria impactante para a construção do saber e da consciência histórica que iria ser construída junto com o filme, professor e aluno. Mae! (2017) nesse aspecto é um filme que precisa ser analisado de forma aprofundada e buscar compreender todos os elementos que correspondem a sua possível (não) relevância num contexto educacional de base.

Inicialmente é importante discorrer um pouco sobre o diretor e suas pautas ideológicas que certamente vão influenciar consequentemente os seus projetos cinematográficos, o Darren Aronofsky é um cineasta americano conhecido por produzir filmes que ironicamente dividem bastante a crítica norte-americana, alguns consideram seus projetos admiráveis, outros consideram uma abominação completa, ou seja, é perceptível uma ambiguidade bastante presente na sua esfera fílmica. Ele é diretor de filmes como Noé (2014) e o próprio Mãe! (2017) ambos filmes que correspondem ao viés ideológico do diretor, um ambientalista. Falando do filme analisado em si, vamos considerar primeiramente alguns aspectos relacionados a sua estreia, o filme recebeu críticas tremendas, uma bilheteria consideravelmente baixa e até existiram críticos que consideraram como o pior filme de 2017. Dessa forma, é observável a má recepção que o filme obteve mesmo com um elenco de peso formado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem.

A partir disso, é necessário também visualizar outros elementos fundamentais para a construção da argumentação como, por exemplo, a narrativa proposta pela obra cinematográfica. O filme é um construto sobre a história bíblica, ele tenta percorrer um todo gigantesco, que vai desde o primeiro homem até o apocalipse, entretanto ele faz isso através de arquétipos não tão compreensíveis, devido principalmente ao mistério que o filme tenta causar ao se comprometer de contar a história bíblica sobre o começo, meio e fim do mundo através de personagens sem caracterização própria, a heroína principal é a “mãe” e o herói principal é “ele”, ou seja, o filme deixa as pessoas tentarem compreender quem são essas peças dentro de toda essa pintura.

Dessa forma, já se inicia uma das dificuldades de se pensar nesse filme como um aspecto de aprendizagem histórica, não que a narrativa bíblica sobre a história não deva ser estudada, decerto que ela cumpre um papel muito importante dentro das narrativas que existem, mas da forma que foi construída nessa obra  é bastante difícil de ser destrinchada em sala de aula. Mãe! estaria afastado do centro histórico que corresponde ao deslumbre de uma possível realidade passada, ou melhor, dos vestígios do passado, o filme se volta muito mais para uma ficção do que uma reconstrução do construto bíblico sobre os fatos. Decerto que, os filmes ficcionais que são entendidos como fantasias históricas, ainda que não busquem representar uma “verdade” histórica, eles continuam a nos dizer uma série de fatos, que são passíveis a análise do historiador, mas que infelizmente para o quadro situacional dessa obra em específico não é funcional, exatamente por não fornecer todos os elementos de forma bastante visível para que aja uma melhor compreensão de um possível corpo estudantil numa esfera escolar. Sem falar da estética fílmica que gradativamente vai se direcionando para imagens pesadas demais para serem digeridas em sala de aula. Um bom exemplo é a cena onde o bebê é posicionado numa espécie de seita religiosa de adoração, a cena é decerto de um exagero em vários sentidos possíveis.


Fonte: ‘Mãe!’, 2017.

O que se passa durante essa cena é pautável de serem feitas inúmeras analises, não apenas por se retratar do sacrifício de um pseudo Jesus, pois, há interpretações que sugerem uma fusão dessa figura com outra divindade. Segundo a Brigid Burke:
“O bebê canibalizado não pode ser uma verdadeira figura de Jesus; ele não tem idade suficiente para ter um papel importante. Ele é mais como o sacrifício de totem de Freud. O caráter Dele não tem nada a ver com Yahweh em disposição - é como se Aronofsky fundisse Yahweh e Jesus nesse personagem, quando são personalidades muito definidas e separadas. (2018, Tradução Nossa.)

Logo, Burke traz mais uma possível caracterização que é complexa de ser analisada numa possível perspectiva escolar. Dessa forma, é importante pensar  não apenas esse filme como uma narrativa ficcional densa, mas também seria possível de se pensar dentro do ensino de história(Superior), em estudos sobre várias vertentes históricas, alguns exemplos são considerados através  do pensamento ideológico do diretor que constrói o filme como uma crítica ao contínuo maus tratos ao planeta terra, ele sendo um ambientalista foca também nessa parte, se as pessoas fizeram isso com uma criança, demonstra certamente uma irresponsabilidade com coisas que necessariamente precisariam de cuidado e que, entretanto, não o recebem de forma mais específica. Esse discurso é possível levando em consideração o que Marc Ferro diz sobre um filme falar menos sobre si próprio do que dá sociedade que o produziu.

Portanto, Mãe! é um filme que esteticamente não é agradável de se apresentado ao alunado, sua duração é grande, seu fluxo é irregular, inconstante e que acaba causando estranheza e quando acelera é repleto de imagens de sanguinolência e violência que até tem um contexto, mas que não preenche lacunas históricas necessárias para serem analisados numa esfera básica de ensino. A figura muda quando se voltamos para um plano de ensino superior, nas universidades, numa sala de aula composta por futuros professores de história, buscando revitalizar essa maneira de ensinar história e que precisam pensar e debater os filmes em questão, entretanto essa pauta não será abordada nesse ensaio, pois o foco é o ensino de base.

Agora que é notável que nem todos os filmes são inseríveis num contexto escolar, por terem inúmeras problemáticas em sua estética e narrativa, pode-se voltar para outro filme necessariamente também filosófico e que debate uma outra figura feminina materna, mas que diferente do primeiro filme, possui vertentes destrincháveis no ensino de história básico buscando compreende uma questão temporal e filosófica de forma mais ampla e perceptível para o possível alunado. Viagem no Tempo (Voyage of Time, 2016), é um filme dirigido pelo Terrence Malick, diretor de outros filmes bastante filosóficos e que detém até mesmo uma carga histórica intrigante, entre esses filmes Além da Linha Vermelha (1998) e O Novo Mundo (2005). O diretor é bastante aclamado pelos seus trabalhos, o Malick também tem uma formação filosófica que colabora no seu recorte fílmico.

Como se trabalhar o Viagem no Tempo? Antes de responder essa pergunta, é necessário entender que esse filme tem vários elementos e camadas que são de forma mais geral, densas. É necessário buscar um elemento (histórico, filosófico e até mesmo ambiental) e trabalhar de forma mais concisa. Através da BNCC: (EF06HI03) “Identificar as hipóteses científicas sobre o surgimento da espécie humana e sua historicidade e analisar os significados dos mitos de fundação.” Buscaremos compreender como trabalhar esse filme no ensino de história de base.

É importante iniciar observando que desde o começo, o filme se propõe a discutir inúmeras questões filosóficas que por si só já são intrigantes e relevantes dentro de um contexto educacional, mas não fica amarrado apenas a isso, o Malick se propõe a diversificar as camadas filosóficas, sociais, biológicas e históricas. O filme diverge muito da outra obra fílmica (Mãe!) porque, no primeiro filme existe uma alegoria bíblica, nesse filme em questão há uma racionalização dos processos temporais e históricos. O Viagem no Tempo, começa demonstrando um processo cientifico do começo do universo, ele passa por várias teorias biológicas, terra-formação, trazendo até mesmo a teoria dos dinossauros e o cometa que levou a sua extinção, ou seja, há um desdobramento decerto possível de ser abordado e explanado em sala de aula, pois, se remeteria a um contexto amplamente discutível segundo as perspectivas da BNCC. Mas é válido destacar uma questão, a presença de um ser metafisico que se desdobra durante todo o filme, a presença da figura materna que também existe no filme Mãe! e que, entretanto, são figuras completamente opostas.  No Viagem no Tempo, a mãe é uma figura doadora de vida, que é gentil e que se ausentou da vida de seus filhos, a mãe é à terra, enquanto isso, a mãe do filme do Darren Aronofsky repele a humanidade, odeia essa infecção que a corrompe, ela também é o planeta terra.      

O filme explana as perspectivas culturais e sociais de diversas sociedades em diversos tempos possíveis, inúmeros processos sociais e culturais, perpassando por cotidiano, guerra, fome e miséria, entre outros processos  sociais, mas vale destacar um em específico  que acaba se tornando fundamental e dando mais credibilidade a esse filme dentro da proposta da educação de base de história. A origem do controle do fogo, a dominação do fogo pelo homem que acontece na Pré-história.


Fonte: Viagem no Tempo, 2016.

O filme aborda esse processo, demonstra ou tenta demonstrar (como fica explícito na imagem acima) como era esse cotidiano durante essa época (de forma resumida), onde a escrita não existia e havia uma variedade de signos e simbologia feitas através de diversas artes rupestres. O ponto é, esse não é o único processo intrigante dentro do filme, o foco central é na questão filosófica, mas acaba criando várias raízes, sociais, históricas e biológicas que podem (devem) ser abordadas de forma consciente dentro de uma sala de aula. O filme é capaz de produzir inúmeras camadas de interpretação e que não ficam confusas de serem compreendidas, a sua linha estética(fílmica) é linear e bem elaborada. De forma geral, Viagem no Tempo é um filme completo no  que diz respeito ao ensino(de história) por proporcionar uma gama de interdisciplinaridade, o filme é, portanto, capaz de unir vários elementos que se alinham de forma franca aos objetivos da BNCC no que diz respeito não apenas a história, mas também a sociologia, biologia e filosofia.

Referências
José Carlos da Silva Neto: Graduando em História pela Universidade de Pernambuco; Membro do Leitorado Antiguo: Grupo de ensino, pesquisa e extensão em História Antiga.
Arthur Melo Florêncio: Graduando em História pela Universidade de Pernambuco; Membro do Leitorado Antiguo: Grupo de ensino, pesquisa e extensão em História Antiga.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf Último acesso: 30/11/2019
BURKE, Brigid. The Mythology of Darren Aronofsky’s “mother!”. Metapsychosis. 23/07/2018.  Disponível em: https://www.metapsychosis.com/the-mythology-of-darren-aronofskys-mother/?fbclid=IwAR20PBMYF8V7JTMUzU52TN7HAkFGfeHXnaaHR7bQbCPtVeOh2MjYBLWig2Y Acesso em: 30/11/2019
FONSECA, Thais Nívia de Lima. História & ensino de História. 2ª. Ed., 1ª. Reimpressão. – Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
KARNAL, Leandro. Conversas com um jovem professor. Editora Contexto: São Paulo, 2012.
MARC, Ferro. Cinema e História. Trad. Flávia Nascimento. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
NOIRET, Serge. História Pública Digital. Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 28-51, 2015.
REED, Rex. ‘Mother!’ Is the Worst Movie of the Year, Maybe Century. Observer's Daily Newsletter. 15/09/2017. Disponível em:  https://observer.com/2017/09/darren-aronofsky-mother-worst-movie-of-the-year/ Acesso em: 19/11/2019.
RÜSEN, Jörn. Narrativa Histórica: Fundamentos, Tipos, Razão. Trad. Marcelo Fronza, p. 3-14, 1993.
SOUZA NETO, José Maria Gomes de. O ensino de história e o infinito banco de imagens: Êxodo, deuses e reis(2014).  Outros Tempos, vol. 16, n. 28, 2019, p. 162 - 183. 2019.


3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Prezados, parabéns pelo texto. A escrita está muito boa e fluida.

    Tenho duas perguntas:

    1) A ideia de "narrativa ficcional densa" deriva em alguma medida da "descrição densa" do pensamento geertziano? Se for o caso, creio que seja algo a se pensar para tratar dos limites entre a Antropologia e a História.

    2) Naturalmente, a recepção pode variar conforme o público e presumir uma mensagem única pode ser problemático. Deste modo, como não escorregar para um tratamento universalizante e estetizante dessas obras considerando contextos e realidades específicos?

    Abraços,

    Renan Birro

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    1. Olá. Renan, boa tarde. Primeiro gostaria de agradecer a sua contribuição a esse simpósio tão importante que ajuda em debates reflexivos e históricos de diversos temas abrangentes. Respondendo o seu primeiro ponto sobre a ideia de narrativa ficcional densa. A priore não há uma coligação com o conceito apresentado por Clifford Geertz na obra "Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura.”

      Sobre o segundo ponto: levarei em questão que estamos tratando sobre o ensino de história e a aplicabilidade de metodologias alternativas de ensino. Dessa maneira, para não cairmos numa possível análise que fuja da prioridade do conteúdo, é realmente fulcral buscar zonear o foco no tema histórico apresentado, mas sempre considerando tanto a estética (de forma menos prioritária em certas obras) como a narrativa. Concordo que é importante não levarmos o fator universalizante, para não cair na generalização de uma interpretação única. Portanto, é dai que vemos o papel que a pesquisa tem, é importante analisar o objeto de estudo por si mesmo, tirar as suas próprias conclusões, debater com outros pontos de vista, buscando observar os elementos mais distintos que outro pesquisar notou, é por isso que o papel do referencial teórico (para nós de forma mais específica) é tão importante.

      Att. José Carlos e Arthur Melo

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