Jessica Caroline De Oliveira


“TRABALHAR E SUAR BASTANTE PARA ESCAPAR DA FOME”: REFLEXÕES SOBRE ENSINO HISTÓRIA E OS DILEMAS SOCIAIS REPRESENTADOS NO FILME GERMINAL




A sua razão amadurecia,
Deixara de lado o rancor.
Sim, já o dizia Maheude
Com o seu extraordinário bom senso,
Seria um bom golpe,
Agrupar-se tranquilamente,
Conhecer-se, criar sindicatos
Quando as leis o permitiram,
E no dia em que todos estiverem unidos,
O dia em que milhões de trabalhadores
Enfrentar-se-ão com milhares de revolucionários,
Tomar o poder, acabar os amos.
Que amanhecer de verdade e justiça!
Agora, no céu, o sol de Abril brilhava com esplendor,
E aquecia a terra que dava fruto.
Por todos os lados os grãos inchavam, crescia,
quebravam a casca necessitando de calor e de luz.
A profusa seiva fluía num murmúrio, o ruído
Da semente se dava num grande beijo.
Cada vez com mais força, como se estivessem
Mais perto da terra, os companheiros batiam
Por baixo dos ardentes raios de sol, nesta manhã
Juvenil, era deste rumo que a terra estava necessitando.
Os homens cresciam, um negro exército vingador
Brotava lentamente nos sulcos, e frutificava
Para ser recolhido nos séculos vindouros, e aquela
GERMINAÇÃO depressa iria rebentar na terra.
Renaud (Étienne Lantier)
Filme Germinal, 1993, França

Nos liames do movimento da sociedade, a imagem empregada para representar a Revolução Industrial associa-se as estruturas de trabalho, os modos e os meios de produção que se desenvolveram neste contexto. Tomando como referência essas assertivas, se reduz este processo à mecanização das técnicas, disciplinarização do trabalho, desenvolvimento de fábricas e cristaliza a ideia de “marco histórico” a partir da criação da máquina a vapor. Essa profusão de representações coteja com o ‘senso comum’, bem como, com o déficit e a maneira como os materiais didáticos foram elaborados, isto é, as seleções e premissas teóricas vinculadas ao tema, o tornam frágil e passível de ignorar dados que precisam ser contextualizados, problematizados e dialogados com o corpo discente, como demonstram as balizas educacionais que orientam a minha práxis enquanto educadora.

Partindo do horizonte acima destacado, é pertinente lembrar que os anseios da educação histórica – cujo teor conceitual respalda a minha concepção de ensino –, há um bom tempo, tangencia discussões que permitem o olhar para o elemento humano; suas atuações, peripécias, mudanças e transformações. Portanto, ensinar e aprender a História não se restringe a fatos políticos e grandes heróis, mas sim, evoca a possibilidade de produção de conhecimento a fim de construir sentido, orientação e interpretação de mundo e de si mesmo, como bem coloca Rusen (2007). Não distante disso, Oliveira (2014, p. 12) descreve que “é preciso trazer as continuidades e descontinuidades humanas para o ensino em sala de aula, correlacionar as lutas e tensões ocorridas no passado com as realidades próximas [...]”, o que rompe com o modelo de ensino (também chamado de tradicional) que outrora se pautava no desfile de datas e nomes.

O caleidoscópio teórico e metodológico, aqui pensado, segue a diretriz de educação proposta por Freire (1981) e cotejada por Rusen (2007), a qual permite pensar na problemática e na justificativa do texto, visto que, remete a ideia de que o ensino não se trata de um depósito de informações, estudantes da rede escolar não são arquivos humanos, ou alienados a mera memorização de conteúdo. Isso porque, chama a atenção para a possibilidade de compreensão do sentido e da historicidade das ações humanas. Seguindo essa linha de raciocínio, Freire (1981) destaca a importância de relacionar o currículo educacional com as experiências práticas, além disso, evidencia a potencialidade de orientar as pessoas para a percepção de que elas não só estão no mundo, mas fazem parte dele e são responsáveis por suas permanências e/ou transformações.

O processo de ensino-aprendizagem é fundamental para a construção de uma sociedade crítica, justa e igualitária, como também, é fruto do que se seleciona, organiza e ministra em sala de aula. Toda e qualquer exclusão, marginalização ou depreciação do elemento humano e suas atuações, tende a ser um desserviço as premissas da educação básica. Por isso, os autores supracitados, embora derivem de um lugar social distinto, corroboram para uma interpretação comum acerca da educação, pois sublinham a necessidade da formação de uma consciência histórica crítica e, mais do que isso, o anseio de formar sujeitos aptos para interpretar seus contextos históricos e agir sobre eles. Noutras palavras, possibilitar a formação de atores sociais e não meras marionetes da causalidade ou do destino.

Dito isso, este texto tem por objetivo discorrer sobre o outro lado da Revolução Industrial, o lado humano e seus dilemas sociais. Para problematizar estes anseios, utilizar-se-á como fonte algumas cenas do filme “Germinal”, as quais, serão analisadas a partir da historiografia acerca do tema, a fim de gestar uma ponte entre material fílmico e teoria, bem como, esclarecer questões pertinentes sobre este processo histórico (que pode e deve ser levado para o ensino escolar).

Para atender a essa reflexão (Revolução Industrial – Práticas Humanas) deve-se ter em mente que esse recurso não deve ser entendido como objeto ilustrativo, e sim, como fonte de análise histórica. Nessa direção, Kobelinski (2013) explica que é preciso separar os pontos de discussão e instrumentalizar o uso didático do filme, criando critérios e perguntas sobre o material. Outros dois eixos são pertinentes a esta discussão: o primeiro se dá pela crítica ao momento de produção de um filme, pois, como afirma a autora Nova (1996), é produto e reflexo da sociedade que o construiu; o segundo, se dá pela importância de uma contextualização histórica prévia que, conforme explica Nóvoa (1995), permite que o alunado saiba qual o tema e os conteúdos que irão compor a análise posterior. Importante ressaltar que os recortes selecionados e o material fílmico se tratam de uma representação do contexto analisado. E, enquanto conceito de análise, a ideia de representação está anteparada nas formulações teóricas de Chartier (2001), o qual explica que:

“as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. [...] As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio”. (CHARTIER, 2001, p. 17)

No tocante ao filme, deve-se dizer que a produção intitulada “Germinal” foi produzida no ano de 1993, na França, e é baseada na obra Émile Zola, com a direção de Claude Berri. Em síntese, o enredo da obra traz algumas representações sobre a vida dos trabalhadores da mina de Voreux no século XIX, suas lutas por melhores condições de vida e de trabalho. Exploração, estupros, revoltas e mortes, o roteiro é recheado de elementos que podem ser contextualizados e dialogados com o presente, sobretudo, no tocante as lutas e conquistas por melhorias e direitos trabalhistas. Entre os personagens, há Maheude (mãe), Toussaint (pai), Vicent (avô), Catherine, Estelle, Zacharie, Lénore, Alzire, Henri e Jeanlin (filhas e filhos), os quais vivem em um cortiço próximo a mina, onde os homens da família e Catherine trabalhavam em péssimas condições e com baixos salários. A situação dos personagens é alterada com a chegada de Etienne, um sujeito que se insere nas dinâmicas de trabalho na mina e passa a exercer influência sobre os demais companheiros, tendo em vista a sua busca por novas oportunidades e o conjunto de ideias que trazia consigo, entre elas, a greve e a revolução, que passaram a germinar na mente e no espírito dos mineiros.

A atmosfera social representada no filme está associada a Revolução Industrial, deste modo, entender o que a historiografia apresenta acerca do conceito revolução é o ponto de partida para compreender a posteriori os recortes selecionados para a discussão aqui almejada. Neste sentido, para pensar essa questão, o texto “Revolução” (Silva, 2012) se revela bem sugestivo, pois sintetiza a maneira como vários autores delinearam suas perspectivas no tocante a este conceito. Evidenciar essas as marcas e mudanças que se expressam nas flutuações interpretativas, oportuniza olhar para o processo histórico e evocar as suas múltiplas ligações, tangenciando e cotejando o conjunto de elementos que o concernem.

Face a estas colocações, Hecto Bruit (2012) explica que se caracterizava como uma mudança radical na estrutura social; um confronto entre a classe que detém o poder do Estado e as classes que se acham excluídas desse poder, por isso, se trata da transformação da sociedade. Outros autores associam esse viés a uma mudança rápida e violenta, sendo sempre traumática. Modesto Florenzano, por sua vez, argumenta que a revolução se configura em criar e colocar em prática um novo projeto social. Não distante disso, Florestan Fernandes comenta que a revolução é um fenômeno social e político de mudanças rápidas e drásticas nas suas estruturas, sendo a ordem social vigente subvertida. Para Hobsbawm (1977) o termo Revolução Industrial está em conformidade com a tradição bem estabelecida, ainda que alguns historiadores a tenham denominado de “Revolução” acelerada.

Frente a este debate, é possível considerar que foi na década de 1780 que as correntes do poder produtivo humano acabaram sendo retiradas, tornando-se cada vez mais capazes da multiplicação acelerada e constante de homens, mercadorias e serviços. Não há como datar um início ou um fim para este processo, o que se pode afirmar que é seu ponto de “partida” foi na Grã-Bretanha, com o término das ferrovias e a construção da indústria pesada. Segundo Hobsbawm (1977), este foi o acontecimento mais importante da história da humanidade, desde a invenção da agricultura e das cidades, visto que, a maior parte das invenções era modesta, indo pouco além dos limites que os artesãos pudessem trabalhar. Em meio a um cenário de transformações, certas condições estavam intimamente vinculadas à Revolução Industrial na Grã-Bretanha, podendo-se arrolar: o princípio de lucro privado; atividades agrícolas ligadas ao comércio e servindo como matéria-prima; rompimento com o sistema feudal; desenvolvimento de manufaturas; e capital social elevado. As indústrias permitiam recompensas excepcionais, expansão da produção com agilidade, inovações simples e baratas, e um mercado consumidor mundial monopolizado por uma única nação produtora. A principal indústria que se desenvolveu neste contexto foi a têxtil e suas fontes de matéria prima vinham desde cultivos internos e externos da nação, seguindo as necessidades de produção e mercado. O elemento humano era mais do que uma simples ferramenta, pois, conforme destaca Sapeli (2008),

“[era] visto como o modo de produzir bens e serviços ou como fornecedor de um emprego ou de rendimentos, porém devemos compreendê-lo antes, como ação transformadora do homem. Pode-se dizer que o trabalho é a forma do ser humano "ser" e como disse Marx "é o que o distingue dos animais", ou “tal como produz assim ele é”. Nascemos potencialmente humanos. Só o que o homem traz no seu aparato biológico ao nascer não é suficiente para viver. E isso o difere dos animais que trazem no seu aparato biológico quase todos os elementos para sua sobrevivência. ” (SAPELI, 2008, p.3)

Neste sentido, o trabalho, segundo Marx (1985), é uma condição natural e eterna da vida humana. E, essa maneira como a humanidade está vinculada as formas de trabalho também pode ser pensada a partir de Engels, o qual afirmar que até mesmo o corpo, a linguagem e o cérebro foram transformados nesse processo em virtude do modo como as suas premissas foram sendo alteradas ao longo do processo histórico. Logo, a medida que as pessoas modificaram suas formas de trabalho, modificaram a si mesmas (bem como, a maneira de agir e transformar as suas realidades). (SAPELI, 2008, p. 3) Estes dados implicam em pensar que essa transformação, embora tenha atuado de forma significativa no desenvolvimento, operou também meios que legaram à desigualdade, miséria e aspectos que serão apresentados no decorrer texto.

Flertando com essa miríade de dados, é possível identificar que o contexto do filme “Germinal” foi palco desse processo de transformações, estimulado pelo caráter capitalista e por conflitos sociais, onde os sujeitos humanos viviam em uma nova ordem, caracterizada pela urbanização fabril, reforma agrária, rompimento com as dinâmicas de vassalagem, mão de obra como mercadoria e formação de outra classe social: o proletariado. Estes elementos podem ser identificados na película fílmica, em primeiro lugar, pelo uso da mão de obra de trabalhadores numa mina de carvão, os quais, eram crianças, mulheres e homens que vendiam seu trabalho por um salário que era insuficiente para manter-se, no entanto, servia como uma alternativa de se inserir nesse ambiente fabril. Para ilustrar essa dinâmica, Abreu et.al. (2017), descreve que as minas possuíam o seguinte regime de trabalho:

“os mineradores tinham que carregar uma vagonete bastante pesada, submeter a trabalhos braçais árduos, e como o salário pago era de acordo com a quantidade de vagonetes entregues, eles tinham de “suar” bastante a ponto de colocarem diariamente suas vidas em risco, isso para tentar escapar da fome [...]”. (ABREU et.al., 2017, p. 185)

O segundo ponto diz respeito ao local onde os trabalhadores moravam, o qual, segundo Hobsbawm (1977), se tratavam de espaços que cresciam desordenadamente rápido, com condições habitacionais, fornecimento de água e saneamento precários. Esse conjunto de fatores fomentou diversas epidemias, como a cólera, tifo e febre, pontos perceptíveis em “Germinal”, visto que, uma das filhas da personagem Maheude morre acometida por uma doença. Pode-se destacar ainda que era comum nas áreas industriais doenças pulmonares, por isso, as classes médias e ricas ficavam afastadas das cidades fabris, o que tornou a segregação mais evidente. Dito isso, as grandes cidades europeias se dividiram, criando o conceito universal: zonas pobres a leste e ricas a oeste, o que também é ilustrado no filme. Para Marx (1975), a comunidade em si passa a ter sua configuração alterada à medida que vai se estabelecendo a propriedade privada, a qual foi ajustando os moldes sociais conforme as mudanças advindas da produção. À medida que a sociedade passou a produzir excedentes, grupos específicos que se beneficiaram dos mesmos, adquiriram o poder sobre os meios de produção, detendo não só a hegemonia da produção, como também, de comercialização e capital. Isso os diferenciou dos sujeitos que não contavam a propriedade e os meios de produção, servindo assim, como mão de obra. E, pautando-se nas representações fílmicas, vivendo e sofrendo com a realidade de desigualdade apresentada pelos personagens.

A narrativa proposta por “Germinal”, assim como as sedimentações historiográficas, revela que a economia gestada pela esfera industrial gerou a miséria e um descontentamento social em diferentes níveis e formas. Esse aspecto pode ser exemplificado a partir de algumas cenas e informações presentes na película fílmica, como a representação de um personagem idoso, de saúde desgastada, ao contar que iniciou seu serviço com oito anos de idade. Durante sua vida, trabalhou para sobreviver e, quando foi afastado, passou a ser um ‘fardo’. Além disso, é possível perceber que todos os membros da família são “modelados” para trabalhar na mina, ou ocupando a vaga de seus parentes, garantindo assim, um salário a mais por mês.

A mina, apresentada no filme, expõe as condições de trabalho em regime de exploração constante, cujos donos não estavam preocupados com seus trabalhadores, e sim, com a expansão da economia, descontos e baixos salários. Advogava-se então, a premissa de uma economia voltada para o lucro e um valor atribuído ao trabalhador conforme o seu caráter ativo, se tornando descartável e sem direitos durante sua inatividade, o que legou a aglomeração de pessoas que, na miséria, já não contavam com as faculdades necessárias para manter-se em algum ofício. O regime de exploração, além das consequências para a saúde, legava a diversos acidentes de trabalho e, em ambos os casos, o trabalhador não contava com tratamentos médicos. As condições insalubres ou os acidentes que levavam a morte deixavam as famílias a mercê de um a menos para trabalhar, pois não havia garantias ou direitos de assistência. Nas palavras de Mendonça (2014, p. 38), “além de não haver um sistema adequado de primeiros socorros, o atendimento médico era incompetente e ineficaz”. Até mesmo o alcoolismo nas cidades fabris agia como uma peste e um sinal de desmoralização. A taberna representada em Germinal simboliza não só o problema social que era o alcoolismo, como também, o fato de servir como um espaço de sociabilidade, tanto para a distração quanto para a profusão e circulação de ideias, como aquelas vinculadas ao socialismo, a greve ou a decisão em manter ou não a mesma.

Trazendo as discussões para outros pontos representados em Germinal, pode-se dizer que ao postular momentos de tensão entre os operários, tendo em vista as condições de trabalho e ideais que passaram a estimular o espírito trabalhador, o discurso de Etienne Lantier passa a unir o proletariado a partir de uma perspectiva comum: a greve – e as balizas intrínsecas a ela. Essa base pode ser entendida a partir de Hobsbawm (1977), na medida em que o autor descreve que a adesão da classe trabalhadora foi percebida tanto na Grã-Bretanha como na França, sobretudo, com o advento do socialismo, no qual, em 1820, os trabalhadores rapidamente aliaram-se aos seus vieses. A classe operária estava confiante, denominava-se como “o movimento trabalhista”, e possuía como ideologia a “comunidade cooperativa". Esse movimento representava os trabalhadores insatisfeitos, pessoas pobres que, aos poucos, passaram a se revoltar contra a burguesia liberal e alta aristocracia. Nesta acepção, o socialismo fortaleceu-se como uma crítica alternativa a aqueles que se sentiam excluídos e desfavorecidos. A população tinha a opção de tornar-se submissa aos seus patrões burgueses, lutar para serem burgueses ou rebelar-se.  No filme, é possível perceber essas interações quando os operários passam a realizar reuniões para discutir as medidas sobre a greve; quem apoiaria, quais as reivindicações e mudanças objetivadas.

Nesse mosaico de experiências, a massa trabalhadora vivia com a finalidade de sobreviver, fosse na miséria, na imundície, na prática de penhorar bens ou na troca de “favores” sexuais. Não distante disso, Mendonça (2014) argumenta que não havia a noção de bem-estar social, por isso, a sobrevivência era o que importava. Esta “sobrevivência” pode ser percebida na narrativa fílmica em diversas cenas, entre elas, três que carregam um conjunto de elementos bem sugestivos. Na primeira cena, a personagem Maheude vai até a casa dos donos da mina levar as roupas que lavava para eles, aproveitando a oportunidade, solicita a doação de comida ou de alguns produtos em virtude das necessidades que a sua família passava. Desta forma, recebe algumas roupas e um pedaço de pão, além da crítica pela quantidade de filhos que possuía. Às mulheres, cabia o labor doméstico, casar, lavar roupas de outras pessoas, vender quitutes, trabalhar juntamente com os homens nas minas, ou, em última instância, a prostituição. Neste sentido, o filme demonstra parte dessas possibilidades sociais, destacando o fato de que quando estavam inseridas em dinâmicas de trabalho fora de casa, não era incomum que recebessem um salário menor em virtude do preconceito de gênero. Se as mulheres precisavam enfrentar essas situações para inserir-se no trabalho externo a esfera doméstica, outro grupo que contava com pressupostos bem específicos de exploração eram as crianças. Isso se deve ao fato de que havia uma lógica de contrato de aprendizagem e a promoção de uma formação técnica e profissional metódica. Inclusive, o filme evidencia a noção de que as crianças serviam como um investimento futuro de complementação da renda familiar, apesar de que, recebiam um soldo menor assim como as mulheres. Para Mendonça (2014),

“O trabalho infantil, naquele ambiente hostil, em condições insalubres, perigosas e degradantes, sem tempo para estudar, além de arriscado, era um determinismo na vida dos menores que cresciam sem grandes ambições ou visão de mundo tendo o porvir destruído pela necessidade de se manterem.” (MENDONÇA, 2014, p. 43)

Cotejando estes aspectos e evocando a Engels (2014), entende-se que o trabalhado realizado nas minas deixava marcas indeléveis em suas múltiplas teias, tendo em vista que o ingresso precoce atrapalhava o desenvolvimento físico, legava a doenças e ao envelhecimento prematuro. Se isso não fosse o suficiente, em relação as crianças, o autor desvela que “é fato corriqueiro essas crianças passarem todo o domingo na cama, tentando recompor as energias esgotadas durante a semana”. (ENGELS, 2014, p. 277). Poucas frequentavam a escola e, aquelas que se atreviam, tinham de lidar com a dificuldade de aprendizagem e cansaço.

 Retornando aos recortes apresentados no filme, noutra cena, Maheude vai até a venda e troca as roupas que havia ganhado por alimentos que faltavam. Na ocasião, recebe a proposta do dono do estabelecimento a barganha desses produtos por “favores” sexuais com a sua filha. Por fim, o desespero pela falta de comida é representado quando um grupo de mulheres vai até o estabelecimento comercial e solicita que o vendedor lhes “marque” os alimentos que precisavam, pois nada possuíam para alimentar suas famílias. O dono, novamente recorre a fala de que os dará em troca de relações sexuais, uma senhora aceita a oferta, porém, é recusada em virtude da sua idade. O que faz pensar que estas “negociações” eram frequentes e serviam como uma alternativa para conseguir alimentos, visto que, os salários eram muito baixos e, mesmo que vários entes trabalhassem, não recebiam o suficiente para o seu sustento que incluía os mais velhos e as crianças. Além disso, Hobsbawm (1977) arrola que devido a um solo infértil e más colheitas, havia momentos em que a fome se alastrava, sendo a alimentação das pessoas limitada a adubo, feno, pão feito de folhas de feijão e frutas silvestres.

Uma imagem estereotipada é apresentada no tocante as mulheres, as quais são representadas como sensíveis, desesperadas e dispostas a “sacrificar-se” pelo alimento para sua família. Para esclarecer sobre essas questões, Thompson (1998) estabelece a relação entre a economia moral e os trâmites sociais com a forma que a classe reagia frente as suas demandas: com acordos, negociações ou uso da força para conquistar o que era necessário. Para o autor, os sujeitos sociais estavam intimamente ligados a questões de defesa de seus direitos e costumes tradicionais, consolidando um apoio da ampla sociedade. Não é errôneo argumentar que a elevação dos preços e maus procedimentos dos comerciantes contribuía de forma direta as queixas da população, todavia, cabe ressaltar que tais queixas estavam dentro de uma ordem que regulava e operava nessas práticas (i)legítimas de mercado. Essa economia moral não era vista como (a)política, pois possuía suas noções e princípios definidos e defendidos; sendo assim, em diferentes momentos, reagia-se sobre a alta dos preços, desde o preço do pão às questões salariais.

Tangenciando os pontos que dialogam as relações de trabalho à fome, é plausível dizer que o pão e sua inserção na dieta popular da sociedade refletia, em parte, os graus relativos de pobreza e as condições ecológicas, segundo aponta Thompson (1998).  Ainda que houvesse a farinha de aveia, cevada e outros cereais, o pão feito de farinha de trigo teve o crescimento de seu consumo com o passar do tempo, o que pode ser notado no filme “Germinal” quando Maheude vai até a casa dos donos da mina de carvão e fala para a senhora que em sua casa não havia pão, não havia o que comer. Em seguida, a filha dos burgueses corta um pedaço do pão que tem sobre a mesa e entrega para as duas crianças que acompanham Maheude. Noutra cena, quando a família de Maheude está jantando uma sopa, pequenos pedaços de pão acompanham a ceia. Além disso, no início do filme, quando Etienne está começando seu trabalho na mina de carvão e não havia levado nada para comer, Catherine divide metade do seu pão com o jovem. Ambas as cenas demonstram a importância do pão como alimento na sociedade fabril.

Seguindo nesta linha de argumentação, Thompson (1998) elucida que os motins orquestrados pela população serviam para delinear uma ação popular de forma imprecisa, considerando, nesta acepção, que os debates e enfrentamentos faziam-se presentes contra a elevação de preços e pressionavam para que houvesse um reajuste. Assim como se observa no filme, o autor explica que eram as mulheres que iniciavam suas ações e atacavam negociantes impopulares. Em linhas gerais, um motim não precisava de uma grande organização, mas do apoio da comunidade e um padrão entre seus objetivos e limites. Em “Germinal”, há uma cena que representa muito bem essa ideia de “motim”, na medida em que as mulheres, impulsionadas pela miséria em suas casas, dirigem-se ao estabelecimento comercial, chamam pelo comerciante e pedem para que abra a porta, o mesmo tenta fugir pelo telhado, todavia, acaba caindo e morrendo. As mulheres, ao vê-lo no chão, cortam o seu órgão genital, como símbolo de vingança as humilhações e todas as vezes que se submeteram aos seus prazeres.

Entre fome, doenças, desigualdade social e ideais de transformação social, o contexto chamado de Revolução Industrial induz a refletir há múltiplos aspectos que podem ser dialogados com a realidade do presente. Portanto, não se pode pensar e nem mesmo ensinar como algo voltado somente a tecnologia, máquinas e fábricas. Se houve o desenvolvimento das mesmas, foi porque existiram mentes humanas atuando para tal. Por isso, a necessidade de cotejar passado e presente, indagações e reflexões que permitem perceber a forma como a Revolução Industrial deixou suas marcas no presente e os sentidos e significados que a sublinham.

REFERÊNCIAS

Jessica Caroline de Oliveira. Doutoranda em História. Licenciada em História pela Universidade Estadual do Paraná, campus de União da Vitória. Possui Especialização em Cultura Afro-brasileira pela Universidade Cândido Mendes e em História, Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde também possui Mestrado em História, Cultura e Identidades. Atualmente, é aluna de doutorado em História, Poder e Práticas Socais na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Marechal Cândido Rondon. 

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MARX, K. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. [livro]

MENDONÇA, P. Direito trabalhista e literatura: uma reflexão sobre as condições trabalhistas nas minas de carvão com base na obra “Germinal” de Émile Zola. Monografia (Pós-Graduação Lato Sensu – Direito do Trabalho). Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, 2014. [monografia]

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2 comentários:

  1. Olá Jessica,
    Seu texto detalhou bastante a fonte primária (o filme), mas gostaria de saber mais um pouco da metodologia que seria proposta para a utilização em sala de aula desse filme. Obrigado!

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  2. Olá, agradeço pela participação e leitura do texto. Trabalho com a perspectiva de Kobelinsk, no sentido de instrumentalizar o filme e apresentá-lo como uma fonte que traz representações acerca de um período histórico. Além disso, Nova e Novoa contribuem com os aspectos metodológicos na medida em que apresento o contexto do tema abordado, fazendo questões e deixando claro os pontos que devem ser observados no filme, os quais, serão debatidos a posteriori.
    Espero ter respondido sua questão. Att. Jessica

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