Cássio Pereira Oliveira


TAUTISMO, CULTURA HISTÓRICA E CIÊNCIAS HUMANAS: FUNÇÕES DE UMA EDUCAÇÃO HISTÓRICA EM SITUAÇÕES DE ESQUIZOFRENIA MIDIÁTICA



Em dissertação defendida em setembro de 2018, a partir de experiências anteriores produzindo material didático para a internet, resolvemos pesquisar como se dá o processo de aprendizagem histórica no contato com jovens alunos do ensino médio com material didático de história disponível no YouTube. A intenção inicial era perceber se a mera mudança do suporte técnico, do analógico para o virtual, poderia causar por si mesma alguma alteração na maneira pela qual os alunos compreendiam e interpretavam o passado, naquilo que é chamado pelo historiador alemão Jörn Rüsen de consciência histórica: a capacidade de aprender com o passado para compreensão do presente e construção do futuro [2011].

Diversas conclusões puderam ser apuradas, mas talvez a principal delas tenha sido justamente a percepção de que a internet não criava nos alunos percepções ou alterava por si mesma a consciência histórica dos mesmos. Pelo contrário, o que se percebeu foi a cristalização de concepções anteriores de disciplina histórica e de consciência histórica. A rede em suas diferentes manifestações (YouTube, Facebook, etc.) captura elementos dispersos da cultura, fornecidos pelos próprios usuários, e os devolve como signos por meio desse aparato técnico disponível, que os repassa aos aparatos técnicos em um processo praticamente infinito.

No presente texto, buscamos compreender esse processo de captura da cultura por meios técnicos, especialmente na era da comunicação e da comunicação em rede, que é distinta por sua própria natureza à formas “tradicionais” de comunicação, como foram o rádio e a televisão. E compreender a função de uma educação histórica saudável nesse novo contexto.

 

Núcleo epistêmico e forma simbólica – Comunicação e Tautismo

O cientista político francês Lucien Sfez [1994, p. 7-17] faz uma distinção explícita acerca da tecnologia e seus fundamentos epistemológicos, aquilo que ele chama de núcleo epistêmico, com as suas manifestações dentro da cultura, as formas simbólicas. Grosso modo, elas se referem, respectivamente, a aquilo que é possível e realizável dentro da cultura, e o que de fato foi realizado dentro destes limites mesmos – não é a toa que artistas e escritores (e, nesse caso, os cientistas) carreguem consigo o zeitgeist de seus contextos históricos. Partindo desse raciocínio, o autor francês apresenta todo o desenvolvimento de um determinado conceito de comunicação que se tornou evidente dentro dos centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológicos dos EUA nos anos 1980, e se tomaram o espaço público na década seguinte, com suas diferentes manifestações. Conceitos de rede, informática, inteligência artificial e integração com o meio carregavam consigo uma ideia muito forte de uma comunicação técnica que se convertia em progresso e modernidade – a euforia com a internet e as possibilidades de um mundo conectado de informação infinita, disponível à escolha dos usuários, deu o tom da rede em seus primóridos (VALAREZO, 2018).

A crítica do autor francês é justamente de que uma comunicação assim dada é de que ela serviria como um substituto muito ruim para formas mais tradicionais de comunicação, e que de certa forma haviam sido princípios das instituições democráticas desde seus primórdios. A ideia, naquele momento, de uma sociedade de comunicação, trazia dois problemas: o primeiro é de que a comunicação, enquanto tal, é fundamento próprio de toda a cultura , de modo que só é capaz de fazer sentido acompanhada de outras designações culturais (cultura grega, latina, ocidental, árabe, etc…) – comunicação, por si só, é um termo vazio; e em segundo, que uma sociedade toda ela pautada na comunicação, que comunica o tempo todo com tudo, mata a comunicação – se tudo é comunicação, ela não existe. Tal contexto é exemplificado pela análise técnica que conduziu a esse estado de coisas.

Não cabe aqui a análise em pormenor do percurso técnico da comunicação, que é complexa e extensa demais para essas linhas. Mas são passíveis de resumo em duas grandes concepções que tenderam a se confundir ao longo do tempo. A primeira dela é aquilo que chamamos de comunicação representativa: preocupada mais com os meios pelo qual uma mensagem e/ou informação é transmitida e recebida, seus teóricos (como Claude Shannon e Warren Weaver, pais da teoria da informação, são exemplos) se concetravam mais em questões como transmissão de informações, na qualidade e recepção da mensagem, na tentativa de garantir um livre fluxo e a correta interpretação da mensagem.

Nascida e se contrapondo a esta primeira concepção de comunicação, os teóricos de uma comunicação expressiva se preocupavam mais na integração entre o homem e a máquina, Se a comunicação representativa se preocupava mais em unificar dois pontos dispersos pelo espaço por meios que transpussesem tais distâncias, a comunicação expressiva integra os meio disperso em uma única unidade de sentido, em que todo o espaço é passível de unidade e replicação dentro de um mesmo espaço orgânico. A máquina deixa de ser um ente externo ao homem para se converter em parte dele próprio, uma vez que o meio e a máquina existem por, em algum nível, fazerem parte do homem mesmo, que reflete e é refletido pela máquina. Em certo sentido, aqui temos os primórdios de uma noção contemporânea de rede.

Dentro do paradigma chamado pelo autor francês de tradicional dentro da comunicação, ambas as esferas de complementam em um equilíbrio saudável – a representaçõa gera exterioridade à rede expressiva, enquanto esta se alimenta da primeira fornecendo ao sujeito que se expressa um objeto dado com o qual ele pode se opor e/ou falar sobre. Tal equilíbrio é quebrado quando, a partir dos anos 1980 e nos anos 1990 adentro, o núcleo epistemológico passa a se concetrar no estudo e funcionamento do próprio sujeito comunicante, o tornando parte funcional do sistema comunicativo, quebrando a diferenciação e afastamento necessário ao diálogo entre ambas esferas.

Dessa forma, nasce o tautismo, uma forma de comunicação sem sujeito, uma vez que o sistema se comunica única e exclusivamente consigo mesmo. Neologismo nascido na fusão entre as palabras autismo (o indivíduo que não se comunica, exceto consigo mesmo) e tautologia (repetição sistemática do mesmo), não há diálogo, mas proeminência totalitária da própria comunicação que se instituiu para a sociedade como um todo.

Sfez identifica essa comunicação com o advento da ciência cognitiva, da publicidade e de toda uma política de comunicação que se instaura a partir dos anos 1990 [2007, p. 107-142]. Não cabe aqui aprofundar-se nos pormenores teóricos acerca de como tais pensadores (representativos e expressivos) concebiam a informação e a relação dos homens com suas máquinas, mas compreender que tal postura técnica possui um reflexo claro no campo político. Um ponto muito fundamental em Sfez é justamente o fato das tecnologias eclipsarem o fator de decisão do humano, e a técnica ter afastado do universo político uma unidade de sentido muito própria da cultura, comentada e praticada desde a antiguidade – o ser humano é um animal político por conseguir se reconhecer e se fazer reconhecer em uma unidade política, para os gregos a pólis. A cultura define regras, sentido e hierarquia ao social, e as formas de poder que emergem dessa cultura acabam dando materialidade e continuidade ao todo. O processo que é próprio da democracia é justamente o da contraposição e debate entre essas duas esferas, já que diferentes, portanto complementares.

Toda a cultura necessita de uma base técnica para existir. No que nos interessa, a modernidade iluminista nasceu na república das letras nascida da imprensa de caracteres móveis criada por Gutenberg em 1500. Da mesma maneira, o nascimento do cinema foi “devidamente” apropriado por regimes fascistas do séc. XX, tanto a nível de propaganda, quanto da própria espetacularização do poder (Mussolini fizera uma ponta no final do filme “Roma Cidade Eterna). Porém, a técnica dentro das sociedades tradicionais refletem uma unidade que é própria de toda a cultura, reativam valores e funções simbólicas que saíram do caldo cultural maior, e que de certa forma a ela retornam por meio da ação dos sujeitos. A cultura vive e revive por meio da ação dos sujeitos. A comunicação tautista, ao unir ambas as esferas em um única dimensão da qual deixamos de ser agentes, esconde a própria capacidade da cultura de comunicar consigo mesma, e de criar categorias para o mundo. O mundo perde a sua ordem das coisas e afunda na anomia.

 

Cultura histórica, educação histórica e tautismo

A noção de tautismo e a própria análise de Sfez dão estatuto técnico as palavras de outro pensador francês, Jean Baudrillard (1991), e sua noção da sociedade dos simulacros, onde a ordem dos signos se impôs a própria ordem das coisas, e as coisas se confundem com as representações que deveriam dar sentido ao mundo. Aparência e essência se confundem, uma vez que a cultura apreende a totalidade das coisas em seu modo de ser, em uma constante reprodução de valores e formas de pensar. Incapaz de gerar coisas novas, ela constantemente reproduz a si mesma por meio da devoração do real, que se confunde agora com a própria e inescapável ordem dos signos. Trazendo tal raciocínio para o pensamento até agora desenvolvido, o tautismo enquanto forma simbólica de uma tecnologia que gera confusão, confunde a ordem das coisas, tornando toda a realidade social em algo comunicável, portanto signo capturável e reproduzível. Assim sendo, tudo é comunicação é também simulacro: termo utilizado por Baudrillard que originalmente pertencia ao imaginário cristão, referindo-se ao receptáculo imperfeito de uma ideia perfeita, como a própria imagem do Cristo é uma representação grosseira do amor do mesmo. Em um mundo assim descrito, não há Cristo, somente o simulacro de Cristo.

Baudrillard se preocupa mais com a apresentação de um estado de coisas, sem necessarimante apresentar saídas, em parte porque as saídas propostas são parte do problema, uma vez que, para o pensador, o mundo não tem de fato saídas. Retomando mais uma vez Sfez, é possível afirmar que aqui temos um dos “pontos fracos” do pensamento baudrillariano, justamente porque faltava ao francês as possibilidades de “uma semiótica crítica que desvela as dimensões ocultas da hiper-realidade permitindo uma desconstrução do regime dos signos” [SIQUEIRA, 2007]. Em certo sentido, para fins de educação histórica, não se trata de construir uma crítica ao regime dos signos, mas sim contrapor sistemas de signos, restituindo o real a partir de novas bases. Aqui entramos no terreno da educação histórica, e na criação de novos sentidos para o mundo.

Porque, se a comunicação só é possível dentro do horizonte de diferença entre as representações da realidade com essa realidade mesma, tal diferenciação só é possível dentro do horizonte dado por aquilo que Jörn Rüsen [2014] e Estevão Martins chamam de cultura histórica. Ou seja, o conjunto de significações herdadas historicamente que permitem aos sujeitos interpretar o seu mundo e que permitem um determinado modo de vida de um povo [MARTINS, 2017, p. 86] – uma práxis vital.

“Jogado” dentro do tempo, o homem fica a mercê daquilo tudo que é externo a ele próprio, e a cultura, enquanto significação do mundo, permite ao indivíduo ordenar os elementos do universo, antes dispersos, em um todo coerente. Esse sentido, chamado de Sfez de “bom senso” (ele, curiosamente, não faz uso do termo cultura) é o caminho pelo qual o tautismo, enquanto cristalização técnica de uma forma de compreender o mundo, pode ser combatido, justamente porque é essa a função da cultura histórica. Não no sentido de combater o tautismo em si, mas a anomia que ele gera, uma vez que se perde, em meio ao fluxo de informações, tanto a interpretação acerca do contigente, quanto a própria contingência percebida enquanto tal.

Interpretação aqui se torna um ponto importante, porque a cultura, enquanto práxis, se reativa e se reatualiza por si mesma frente as adversidades que ela enfrenta. E, se a função das ciências humanas, dentro de uma interpretação ruseana [2014, p. 224-240], se refere justamente ao processo de interpretação científica da cultura sobre ela própria, então acabamos por nos tornar mediadores não somente entre a política, mas também com a técnica que passa a ser mediadora entre nós e a realidade. Da mesma forma que o judaísmo e os medievais temiam que as imagens sagradas dos santos, os simulacros, se tornassem mais importante que as divindades em si mesmas, da mesma maneira trabalhamos para evitar que uma dada representação do mundo não se converta em mundo mesmo – especialmente em um momento em que grande parte da nossa comunicação passa pelo Whatsapp.

 

Referências

Prof. Cássio Pereira Oliveira é formado em história pela Universidade Federal de Santa Maria, com mestrado em educação pela mesma instituição.

BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
MARTINS, E. C. R. Teoria e Filosofia de História: contribuições para o ensino de história. Curitiba: W. & A. Editores, 2017.
OLIVEIRA, C. P. O Vlogueiro e o Educador: pensando a educação histórica em sites de compartilhamento de vídeos. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação emEducação, RS, 2018.
RÜSEN, J. Cultura faz Sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Trad. Nélio Schneider. Petrópolos: Vozes, 2014.
SFEZ, L. A Comunicação. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção Tópicos).
_____. Crítica da Comunicação. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
SIQUEIRA, H. S. G. Jean Baudrillard: importância e contribuições pós-modernas. Disponível em: http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/baudrillard.html. Acesso em: <10 de abril de 2020>.
VALAREZO, M. 1999: o ano em que o cinema quebrou a realidade. Youtube. 12 de abril de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fRMzCn3XVjs. Acesso em: 05 de abril de 2020.

3 comentários:

  1. Prezado Cássio, parabéns pelo trabalho.
    Você assistiu a entrevista de Felipe Neto segunda-feira no Roda Viva? Se sim as falas dele interagem com sua pesquisa?

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  2. José, fico feliz que tenha gostado do texto. Muitíssimo obrigado! Quanto a questão do Felipe Neto, eu vi alguns trechos da entrevista dele para com o Roda Viva, e creio que muito do que ele comenta na entrevista é justamente um esclarecimento acerca de um processo histórico do qual o próprio Felipe Neto fez parte: ao criticar a posição que ele tinha quando começou a trabalhar fazendo vídeos com o YouTube, com o seu velho canal "Não faz sentido", de certa forma ele se posiciona com relação ao próprio passado, em uma postura que, quer sim quer não, alimentou ódios e rancores contra pessoas que eram diferentes dele, e baseadas não em argumentos racionais, mas sim no ódio puro e simples

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    1. Que ainda se mantém, ou melhor, é modus operandi de uma extrema-direita dentro da rede. Quando eu comento do tautismo, dentro do meu texto, me refiro a todo um conjunto de mecanismos técnicos que despertam e alimentam esse ódio contra um outro com o qual eu não tenho contato de verdade: assim, se detesta o comunista, o negro, os homossexuais, que ficam reduzidos ao estereótipo que é feito dele - falando em termos baudrillarianos, passamos a odiar um simulacro criado pela própria comunicação. Felipe Neto foi assim no início de sua carreira de Youtuber, mas mudou de postura ao perceber o quão maléfico isso tudo era, e frente às consequências de uma postura assim dada. De certa forma, uma reflexão sobre a nossa história, e da cultura da qual ela faz parte, sempre é um posicionamento moral.

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